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“André Ricardo - LuzCaiada

Igor Simões

 

Começo esse texto com uma canção que de alguma maneira morava em um canto da minha memória e que voltou depois de uma conversa com André:

“Mandei caiá meu sobrado /
Mandei mandei mandei
/ Mandei caiá de amarelo
/ Caiei caiei caiei! Amarelo que lembra dourado /
Dourado que é meu berimbau /
Dourado de cordão de ouro /
Besouro Besouro Besouro”

E arrisco ainda um pequeno poema de Adélia Prado que me acompanha há muito tempo e que, não por coincidência, a poeta chama de Impressionista:

“Uma ocasião
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.”

Essas memórias surgidas por entre conversas feita de cantos, poesias, fachadas caiadas, luzes e têmperas, foi também o caminho para que chegássemos (ele chegou) ao título dessa exposição: LuzCaiada.

É com elas, as memórias, que chego em uma de suas pinturas:

Um fundo em um verde lavado. Um verde que é terra. Que ressoa um verde em pedra, ardósia, transparência. No centro do plano, uma estrutura tem sua base também em tons de verde agora mais marcados, mais escuros. Embora eu saiba que essa forma parte de uma depuração do artista a partir do registro de um desses refletores utilizados para iluminação cênica, ouso ir além do sabido: A estrutura, à medida que sobe para a parte superior da pintura, parece se transformar em pipas. Pipas mesmo! Mas também pode ser um daqueles balões de festa de rua de interior. O que sei é que eles parecem voar em um mesmo eixo. Mas há algo mais! Um conjunto de formas parece se voltar em direção às minhas pipas (ou balões). Como pequenos cometas feitos de camadas de têmpera escorridas em azuis, verdes e rosados, eles parecem ser atraídos para a

estrutura central como se tudo fizesse parte de uma mesma força gravitacional. Tudo parece o resultado de um instante. Parece por vezes que as formas que têm a mesma cor do fundo, surgem dele. Tudo é etéreo. Aprendi com o artista que aquela densidade liquefeita é como se a tinta estivesse caiando o plano. Caiando como fazem os moradores de interior ou de subúrbio quando revestem com outro tipo de cal aquelas fachadas de casas que fazem das ruas, uma experiência particular da cor. Uma luz que surge do cal. Uma Luzcaiada.

Esse título nasce no exato encontro entre método, poesia e memória. LuzCaiada, assim tudo junto, brinca de inventar algo que parece evocar um movimento, um jeito de ser cor, luz. O nome também repercute um jeito particular de lidar com a tinta, o suporte e a pintura. Antes de tudo funciona como um convite para entender pintura como lugar de encontro de si e de memórias acessadas que partem do artista e reverberam também no outro.

Convido quem me lê agora para que siga comigo em um caminho que nos leva a um longo círculo que vai desde a centralidade de André Ricardo na pintura contemporânea brasileira e que nos levará de volta a essa luz particular que nos chega nessa exposição.

*

Essa é a primeira vez em que tenho a oportunidade de me dedicar a uma escrita mais longa sobre o trabalho de um dos artistas contemporâneos brasileiros que mais movem o meu pensamento sobre a pintura. Quando estou com os trabalhos de André Ricardo, penso em poéticas insubmissas. Insubmissa a qualquer tentativa de apreensão rápida. Um trabalho que não negocia sua liberdade em ser aquilo que o artista estabelece como o fio condutor da sua criação. André está presente em várias das minhas anotações anteriores a esse momento. Ele também tem sido artista indispensável nas minhas curadorias.

Acompanhando nos últimos anos o trabalho de André Ricardo, esse jovem artista paulista, cujas raízes tocam lá numa cidade do interior de Pernambuco, sempre me captou a maneira como em sua produção há como protagonista um profundo labor e o compromisso com uma linguagem que não aceita concessões: o ofício da pintura.

Temos vivido um tempo em que a pintura está viva em meio aos seus históricos ciclos que preconizam desde sua morte até sua eternidade. Com essa marcada presença, tenho me deparado com muitas imagens pintadas, mas com um número bem mais reduzido de pinturas.

Explico: ser pintor é muito além de produzir imagens. Para ser pintura é preciso entrega a um processo contínuo que é feito de não apenas ver, mas escutar o que a própria pintura exige. Não é apenas fazer uma pintura, é estar com ela e com as interrogações que o próprio suporte e pigmento exigem. Um jogo feito de perdas e ganhos. Um lugar onde o erro é também caminho. Nisso, André é incomparável.

Pude passar algumas horas em seu (metodicamente organizado) ateliê e me ver diante de uma sequência infinda de cadernos de estudos repletos de desenhos e anotações que se estendem no tempo, pinturas que avançam sobre todas as paredes, horas diárias de trabalho como um operário no cumprimento do seu ofício.

Não nos esqueçamos que ao estarmos em frente às suas telas, estamos também diante da sobrevivência de uma técnica que não é corriqueira e que possui suas bases numa antiga história da pintura. É da mesma têmpera feita de ovo, água e pigmento que mora nas pinturas de Giotto e dos renascentistas que é feita a pintura de André Ricardo. Um procedimento que vem de longe no tempo e que tem sua origem no termo “temperare”. Ou seja: encontrar a medida certa, a precisão. Aprendi com André que a têmpera é mais do que uma mistura de diferentes substâncias, ela é antes de tudo uma disciplina. Um saber que só se entrega com um método desenvolvido com trabalho contínuo. Conhecimento desenvolvido com a mesma disciplina de um menino que ao entrar na universidade, diante de tantas novas informações e caminhos, decide que só se encontraria se pudesse pensar sua produção na chave que é centro do seu ofício e que surge em uma das suas afirmações: “pintura se pensa e se discute pintando”.

É assim que nos primeiros anos de sua formação, Ricardo posiciona um cavalete diante de uma janela do ateliê da universidade e passa meses e meses pintando a mesma paisagem. A vista do prédio diante da janela, ele me conta, foi fazendo da arquitetura um eco da montanha de Saint Victoire de Cézanne. Vejam: estar como esse artista é sempre a possibilidade de uma grande aula de pintura.

Essas leituras e referências que moram no seu período de formação foram também o caminho para dominar a história da pintura moderna e contemporânea e com isso superá-la na sua poética particular. André esgota os sentidos dos cânones por levá-los ao seu limite. Como ele mesmo me conta: “Martelar as paredes dos conceitos da pintura para encontrar a sua própria.” Eis que então do outro lado dessa parede começava a surgir a luz que nos instiga aqui.

Uma luminosidade que antes de chegar na superfície coberta de têmpera começa por um movimento interno. Ali a forma geométrica, por vezes árida, estéril, seca, abre espaço para uma pintura que mora num lugar mais profundamente escondido. Formas que estavam guardadas lá na memória desse artista que entende que a pintura é também uma forma de acessar a si mesmo. Um caminho para encontrar sua própria identidade. André me lembra em um dos nossos e-mails/ cartas, o que dizia uma de suas principais referencias, a artista Eleonore Koch: “o tema da minha pintura se desenvolve a partir de um olhar de relance: momento em que uma imagem do mundo de fora coincide com a existência de uma tal imagem dentro de mim, nunca antes percebida em termos visuais” Formas muito familiares como um carrinho, um barco, um anjo, que são resultados de uma inteligência visual que acessa elementos sobreviventes na memória da cultura brasileira e, assim sendo, com elementos que devem grande parte dos seus sentidos à presença negra.

Com essa afirmação quero introduzir também um outro ponto que me ocorre sempre que penso na pintura do André: a liberação possível a um artista negro contemporâneo. A pintura de André Ricardo se soma na minha percepção a um conjunto de trabalhos de artistas negros cujas chaves não estão dadas apenas em um conjunto de temas e lugares de leitura associados a um determinado repertório de imagens e práticas que se entregariam pela chave da raça.

Quando cito essa tal chave, estou me referindo à ideia de que diante de todo o trabalho de um artista negro haveria um tema racial que antecede e supera a própria elaboração formal. Essa armadilha por vezes ofusca as particularidades de cada investigação. Produz uma cilada perigosa que tende a alimentar fetiches, além de ser utilizada para hierarquizar um determinado tipo de produção branco-brasileira como superior em suas

dimensões formais, por exemplo. Há ainda, e aí entra a liberação produzida por artistas como André, a ideia de que a um artista negro caberia o compromisso de tratar apenas dos tais temas negros. Uma dinâmica por si mesmo racista e limitadora.

Um artista negro produz o que ele quer. Está aberto a esses artistas aquilo que tenho tentado pensar como o direito à forma. Ou seja, poetizar o mundo de acordo com suas particularidades artísticas. Essa noção ao mesmo tempo evidencia que afro-brasileira é a arte produzida por artistas negros brasileiros, independente da poética ou posicionamento adotado por eles.

Há um outro ponto: a ideia de que todo debate identitário tem de se dar a partir de imagens puramente figurativas e com o protagonismo do corpo negro representado. Essa leitura rasa também estabelece um crivo que tende a priorizar um determinado tipo de produção artística negra figurativa como mais “autenticamente preta”. Os elementos de uma ideia pré-conceituosa do que seja rapidamente reconhecido como negro, tem feito o gosto do mercado na última década. No entanto, esse mesmo mercado, que lotou as coleções desse tipo de pintura, parece ensaiar o próprio esgotamento dessa fórmula. Na maioria das vezes, o problema não está necessariamente nos trabalhos e sim numa demanda artificialmente criada, que tende a ofuscar aqueles que não correspondem a esse modelo.

Aqui, mais uma vez, entra o aguçado processo desenvolvido por André Ricardo. Em suas pinturas, o limite entre representação e abstração está o tempo inteiro presente. André pinta em um momento em que essas definições não são excludentes. Mais importante do que optar entre uma ou outra é a engenhosidade com que ele as utiliza para nos abrir um espaço onde podemos acessar memórias que também são nossas. Vejam como é feito de complexidade os trabalhos exibidos nessa exposição. Mas não uma complexidade utilizada para produzir algo hermético, frio, distante. Essas pinturas são complexas porque nelas estão um conjunto de geometrias sensíveis que resultam da depuração de formas do mundo. No jogo desse artista, geometria é também sensação do mundo. Uma geometria afetiva, que nunca é dura. Ela é etérea, luminosa.

Com seus trabalhos, André vem criando uma língua. Uma espécie de vocabulário feito de formas que, como disse a ele, me remetem também a uma estrutura musical. Diante delas, é como se a fachada, o refletor, a serpente, a platibanda, o portão fossem como notas musicais: Embora cada uma delas tenha em si uma sonoridade particular, quando se juntam sobre o plano compõem melodias que são particulares e que seguem a regência do artista. André, nesse sentido, vem jogando com formas que se repetem em seu trabalho e que se articulam no interior de cada pintura. Suas significações próprias são reunidas nas mais diferentes composições, em arranjos que são sempre novos em sua qualidade pictórica. Vejamos um exemplo vindo do seu ateliê:

Na parede, junto à pintura que cito no início deste escrito está uma outra. As formas são as mesmas: Ali está a estrutura que me faz ver voos de pipas e balões de festa de rua enquanto cometas orbitam em seu magnetismo. No entanto, em termos de pintura, nada é o mesmo. Me diz André que essa segunda funciona quase como uma antítese da primeira. Há uma outra densidade. O vermelho cheio de nuances entre figura e fundo, faz com que o amarelo, o alaranjado e os azuis vibrem de maneira completamente distinta. Um azul da Prússia que pode soar como preto a um olhar que não se permita o tempo necessário pousado sobre a tela. O eixo central faz com que densidade e transparência convivam na vibração cromática. É igual nas formas e completamente diferente enquanto composição. Semelhante, mas particular, como são os usos de um vocabulário todo próprio, todo seu e, assim, todo nosso.

Não há como pensar nessa produção, sem lembrar de um outro artista que na repetição de um determinado conjunto de formas compõe o seu próprio alfabeto: Rubem Valentim.

Aliás, há uma carta de André para Rubem, feita por ocasião de uma exposição em Londres, onde os dois conversavam a partir de seus trabalhos. No poético texto, Ricardo lhe conta que seu filho caçula tem também o nome de Valentim. Também nessa carta as proximidades dos dois se evidenciam nas palavras do paulista ao baiano:

Tenho a sensação de que suas formas e cores ecoam fundo e falam de um sentido circular do tempo, no qual não cabe uma ordem cronológica (...)

(...) Gosto da ideia de que o exercício da arte é uma forma de fazer o caminho de volta a um lugar primordial. Lembro o quão revelador foi perceber que pintar é como fazer um percurso interno, lançar luz a uma pintura que já carrego.

 

Em André como em Rubem, as formas não são mudas. Para além da dimensão construtiva, existe uma forma que fala, que possui seus próprios significados primeiros, reelaborados a partir da poética de cada um. Rubem chama seu alfabeto de Kitônico. Terá nome, no futuro, o alfabeto de André?

 

A primeira pintura de que André me fala, é uma fachada. Nela, linhas azuis que podem soar como um portão, se abrem para uma área em um amarelo que parece se acender com um sol que mora em algum lugar. Acima, não posso fugir de ver uma lua que brota do centro da cabeça dupla de um machado de Xangô. A lua é coroada de estrelas. Sei que aquelas são linhas, áreas de cor e círculos que se organizam coreograficamente sobre um plano. Mas também sei que elas também fazem morada na memoria das formas que compõem o próprio Brasil. Sei que elas estão aninhadas na memória desse artista ímpar. Também sei que, ao dividir essa luz conosco, ele nos convida a habitar um espaço que também é nosso. A melhor arte é assim: individual e coletiva. Particular e geral. Há de se reconhecer a grandeza dos artistas que chegam nesse lugar. Artistas, como André Ricardo, que com sua habitual delicadeza nos permite entender que a Luzcaiada de suas pinturas também nos banha.

Igor Simões

Historiador da Arte e Curador

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