Carta a Rubem Valentim
André Ricardo
São Paulo. 15 de abril de 2024
Querido Rubem,
Fiquei pensando sobre o que diria pra você nesta carta. Acho que posso começar contando que meu filho caçula leva seu nome, Valentim. Ele tem apenas três anos, mas já sabe que, além de significar “pequeno valente”, seu nome é uma homenagem a um grande artista. Minha primeira filha, que hoje tem seis anos, se chama Dandara. Bom, não preciso dizer que isso também é motivo de grande orgulho pra ela, tanto que adora contar a origem desse nome que simboliza a força da mulher na luta pela liberdade do povo negro.
Semana que vem parto para Londres, onde faremos uma exposição juntos, eu e você. As crianças já reclamam de minha ausência, mas expliquei o quanto estou feliz em realizar essa mostra em diálogo com um artista que muito admiro. Fazer essa exposição com você é motivo de honra, alegria e, na mesma medida, uma grande responsabilidade a que espero corresponder.
Ao começar a escrever estas linhas, tentei recordar a primeira vez que vi uma obra sua, mas, por mais que buscasse essa lembrança inaugural, não consegui chegar a ela, como se as imagens que tenho de suas formas e cores já estivessem há tanto tempo habitando dentro de mim, que fosse impossível saber quando chegaram. Nesse momento, me dei conta de que essa indefinição no tempo seria, por sua vez, a melhor maneira de definir o significado de sua obra pra mim. Sabe quando você é apresentado a uma pessoa e logo tem a sensação de que já são íntimos? Mesmo que nunca tivessem se visto antes? Seria essa a confirmação de que existe uma ordem de tempo que nos escapa? Gosto de pensar que sim, e me atrevo a dizer que, embora não tenha tido a oportunidade de o conhecer pessoalmente em vida, sinto que somos próximos.
Você, baiano. Eu, paulistano. Adoraria ter nascido na Bahia, devo confessar. Tive, contudo, a felicidade de nascer numa família de pernambucanos e alagoanos e de ter sangue baiano nas veias. Não quero negar minha personalidade de paulistano, mas sou filho de migrantes nordestinos e também não poderia deixar de mencionar a afeição que tenho pela Bahia, terra de cultura fértil, abundante, cuja população de maioria preta é celeiro de artistas primorosos como você. De todo modo, nossa diferença geográfica não é determinante para o pensamento que estou buscando construir, me interessa mais especular acerca de relações que se dão em um plano subterrâneo, que prescindem das fronteiras objetivas do tempo e do espaço.
Sua obra estará sempre viva justamente porque ela é um portal de acesso a esse lugar suspenso, onde posso vislumbrar novos horizontes e contornos acerca daquilo que me constitui enquanto sujeito no mundo.
Gosto da ideia de que o exercício da arte é uma forma de fazer o caminho de volta a um lugar primordial. Lembro o quão revelador foi perceber que pintar é como fazer um percurso interno, lançar luz a uma uma pintura que já carrego. A visita a essa herança é uma afirmação do direito à memória, fundamental na construção de nossa identidade. Ver a obra de um outro artista também é um modo de acessar esse lugar. Sua obra, Rubem, não cessa de me provocar nesse sentido, ecoando fundo a cada encontro com ela.
Embora não busque imprimir um sentido espiritual em minhas pinturas, pelo menos não diretamente, como posso perceber por meio do simbolismo inerente de suas composições,
gosto de pensar que renascemos por meio do trabalho, e nesse processo descobrimos que temos muitos irmãos e irmãs a que ainda não havíamos sido apresentados.
Tem uma imagem que gosto de evocar para traduzir essa ideia, o movimento das ondas sobre as pedras. Uma pequena porção de rocha na beira da praia ressurge a cada recuo das ondas, depois torna a submergir, reaparecendo em seguida. Embora sempre a mesma pedra, o vai e vem das águas dá a ela um brilho renovado a cada retorno à superfície. Impossível apreendê-la de forma definitiva, nem por inteiro. O que vemos são fragmentos de um todo que está submerso, fincado tão fundo na terra, que só nos resta imaginar seu oculto.
Não é essa nossa tarefa enquanto artistas? Especular esse oculto? Nesse mar, o vai e vem das ondas me ensina que o tempo é infinito e circular. Me lanço nas profundezas dessas águas com a segurança de quem sabe que nunca está sozinho, tendo como guias aqueles que vieram antes. É assim que vejo sua obra chegando até mim, abrindo caminhos, como um farol.
Obrigado por tanto.
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